A judicialização das relações familiares e a psicanalização do Direito
5 de junho de 2016, 8h30
Por Giselle Câmara Groeninga e José Fernando Simão
São novas as combinações do tecido social, por vezes esgarçado, em que se descontróem antigas ideologias e, também, o conceito da família biologizada, patrimonializada e matrimonializada. As famílias constituem-se, agora, de forma plural, e surgem novas subjetividades, desafiando-se alguns princípios do direito e mesmo conceitos da psicanálise.
E, nestas incertezas, desponta a interdisciplina mas, também, criam-se também novas ideologias. E a estas é necessário descontruir.
A História mostra que as mudanças, sempre inevitáveis, de inicio, são vistas com desconfiança já que a inércia é movimento que poupa esforços, logo a tendência do ser humano é também pela manutenção.
As inevitáveis mudanças trouxeram a ampliação da liberdade e da individualidade, mas também um aumento dos conflitos e das angústias. E cresce a importância dada ao direito e à psicologia, ressaltando-se aqui a psicanálise. Esta que não pretende explicar ou prescrever, apenas ampliar a compreensão mais profunda da subjetividade, inclusive do que nos é inconsciente.
Os tempos de mudança são de interdisciplinaridade que trazem novos saberes e redesenham-se as fronteiras das disciplinas. O Direito, ciência antiga, a psicanálise, ja não tão nova, se tocam, se conhecem, não sem certo estranhamento.
E nesta combinação de conhecimentos, necessária e profícua, fazem-se novos usos de conceitos e práticas — mas que não necessariamente trazem bons frutos, por vezes transmutando-se em ideologias.
A interdisciplinaridade deveria ter como efeito não só a abordagem de complexas questões com uma colaboração complementar das diversas perspectivas, mas deveria ter também, como efeito secundário, a clareza e o fortalecimento da identidade e da ética própria a cada disciplina. No entanto, os tempos são também de confusão entre saberes e práticas.
Não se trata aqui de constatação de desesperança, mas de perceber criticamente a necessidade de reflexão do momento atual de interdisciplina.
E como forma indevida de lidar com os conflitos e com a angústia, temos o fenômeno ideológico de crescente judicialização das relações, na busca da segurança perdida dos modelos inflexíveis de família, e temos também a ideologia de uma psicanalização do direito, com uma inflação do lugar dado à subjetividade e aos afetos.
Num esgarçamento de fronteiras disciplinares, conceitos e práticas próprias ao direito e à psicanálise acabam por serem indevidamente utilizados. E o resultado são os desvios quanto a seus objetos e suas finalidades originais.
Para o direito, o desvio é nefasto, pois o justo se torna rapidamente injusto. Para a psicanálise, há a perda de sua identidade como ciência, sendo seus conceitos utilizados como explicações fora de seu contexto e prática, ao invés da sua finalidade em ampliar a compreensão, de si e do outro.
Para o direito, há uma perda de categorias jurídicas construídas milernamente e uma falsa noção de que não existe o certo e o errado, de que não havendo mais a culpa também não há mais responsabilidade. Para a psicanálise, há uma falsa noção de conforto como super ciência que explica e resolve todos os problemas do direito.
E, assim, a interação entre o direito e a psicanálise, muitas vezes acaba por se dar como que por uma apropriação indébita de conceitos fundamentados na espistemologia de cada disciplina, e que são transpostos a outro segmento do saber. E, o que é pior, sendo transferidos à atuação profissional.
O resultado é o de que princípios e práticas cientificamente fundamentados se transmutam em ideologias, que desembocam em preconceitos. Estes que são inerentes às atuações movidas não pela ética disciplinar, mas sim ideologicamente alimentadas.
Em tempos de hiperssensibilidade, em que tudo é motivo de ofensa e dano, ao não compartilhar certa ideologia, surge uma fratura abissal em que normalmente se descarta o diferente. Fomentam-se os preconceitos.
Assim, numa judicialização das relações, observamos cada vez mais a transmutação de conflitos que são naturais e normais, vez que estes são inerentes à vida como ensina a psicanálise, em lides judiciais, prenhes de subjetividade. E, numa psicanalização do direito, curiosamente cria-se a ideologia da paz social e da resolução dos conflitos, sendo que estes acabam por ser vistos negativamente, e de forma preconceituosa.
O resultado é um Poder Judiciário afogado em demandas em que se buscam resultados objetivos para conflitos que pertencem mais à ordem da subjetividade. É um Poder Judiciário que acaba demitido de suas efetivas funções.
A promessa em resolver conflitos (e que insistimos ou se transformam ou se tornam crônicos) e não em resolver as lides — que são próprias à esfera judicial —, amplia indevidamente uma demanda à qual o Poder Judiciário não pode atender. Uma instituição que ganha, assim, uma falsa demanda e um falso poder, conhecido pelos psicanalistas como “transferência” (expectativas subjetivas e inconscientes que estão além de sua função). Em suma, o Direito passa a acreditar que resolve efetivamente os conflitos dos relacionamentos.
Enredado no que é da ordem da ilusão, e de cobranças, reativamente o Poder Judiciário tenta oferecer mais e mais serviços. É o que se observa em relação ao movimento da mediação que, para além de seus méritos e real utilidade, se reveste do caráter de “solução adequada” de conflitos transmutando-se em panacéia universal. Aliás, como se os outros institutos e práticas não fossem adequados. Nesta linha, ou perda do fio da meada, são lançadas campanhas tais como “Mediação Digital – justiça em um clique”.
Há uma ilusão de super potência por parte do Poder Judiciário que se afasta de sua realidade e função efetivas. Problemas não se resolvem em um clique (que demora uma fração de segundo) ou por meio de decisões após um longo, moroso e desgastante processo judicial atolado em subjetividades (e que pode demorar mais de 20 anos).
É certo que por trás de qualquer demanda há sempre motivações outras, e que são várias, de natureza subjetiva e, também, inconsciente. Mas a estas não cabe na sede judicial interpretar com o “arsenal” da psicanálise.
É certo que o advogado, como o primeiro juiz da causa, pode e deve orientar o cliente, quando e se possível, a perceber aspectos subjetivos, sem deles procurar tratar, e que estão por trás do desejo de demandar. Evitam-se, assim, demandas inúteis e argentárias em que todos perdem normalmente.
E não raro, quando no curso do processo judicial se põem às claras tais motivações, de natureza subjetiva, a estas é tentador privilegiar quase que em substituição à legitimidade da demanda judicial objetivamente formulada. Assim é que, indevidamente, se muda o tom e o curso de um processo em que o objeto é a divisão de bens, ou os alimentos ou mesmo guarda de filhos, quando se descobre, por exemplo, que houve quebra do dever de fidelidade. Com facilidade se interpreta que as ações seriam decorrentes de um sentimento de vingança pela traição, de ciúme com relação à uma nova companheira ou companheiro, e ainda menos legítima é tida a demanda se aquele ou aquela for mais jovem.
O objeto litigioso (bens a partilhar, por exemplo) abandona o protagonismo para que as motivações de natureza subjetiva assumam o papel principal. Já não se sabe mais porque se litiga, e, parodiando Fernando Pessoa prevalence a lógica pela qual “litigar é preciso”, no sentido de necessidade e de certeza.
Não que tais motivações não possam também estar presentes, mas apontamos aqui a desqualificação dos elementos objetivos em que há uma “interpretite” daqueles que têm caráter mais subjetivo e mesmo preconceituoso.
O desafio é sim, dar a cada um o que é seu, no velho adágio de Justiniano (suum cuique tribuere) buscando no processo de conhecimento dos conflitos que se transformam em lides judiciais, legitimar a existência do desejo, sem atendê-lo, reconhecer a subjetividade e o inconsciente, sem interpretá-los, empatizar com o sofrimento sem tentar curá-lo, buscando a necessária objetividade que deve pautar as relações e decisões judiciais.
Mesmo porque, ao lado da máxima pela qual deve-se dar a cada um o seu, deve-se somar a segunda máxima de Justiniano: alterum non laedere, ou seja, não prejudicar o outro pelo simples objetivo de fazer o outro sofrer.
O Direito, como ciência já antiga, reconhece a sua insuficiência e vê a psicanálise como essencial para a complementação de suas lacunas na compreensão do ser humano. A psicanálise , por sua vez, dá ao direito consistência para, no caso concreto, realizar Justiça. E este, pensamos, é o limite da ética interdisciplinar entre Direito e Psicanálise, para que a interdisciplinaridade que as toca não se transforme em ideologias.
Convite
A judicialização das relações e a psicanalização do direito será tema discutido por juristas e psicanalistas, na VI Jornada Direito e Psicanálise, em São Paulo, promovida pela Diretoria de Relações Interdisciplinares do IBDFAM e pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nos dias 10 e 11 de junho.
Os temas em discussão, (Multi)Parentalidade, (In)Capacidade Civil, Alienação Parental, O Direito Nosso de Cada Dia, questionam a função do direito e da psicanálise enquanto perspectivas de compreensão e agentes propositivos de transformações.
Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2016, 8h30